Sensação estranha

Sensação estranha

É uma sensação estranha de perda e ao mesmo tempo de permanência. Sensação de que se perdem, companhias, sorrisos, fases de crescimento, beijos, abraços, desejos e ao mesmo tempo permanecemos nesse lugar que não muda de cenário, ao mesmo tempo em que assusta a cada novo dia.

Uma sensação de saudade, saudade imensa de um futuro que não se desenhou, enquanto a vida vai tomando forma e dando essa sensação de deformação dos nossos corpos, rostos, jeitos e esperanças.

Uma sensação de cabelo sem corte, de coluna curvada, ombros mais pesados do que o peso que aguentamos carregar do mundo. Sensação de estar amarrada, presa. Presa ao medo. Medo de muita coisa, de quase tudo. 

Uma sensação de desamparo, de falta de fé, de falta daquela mão pra nos puxar. Sensação de carro desgovernado, de frio sem coberta, sensação de que toda hora algo ruim pode acontecer.

O sol encadeia e engana. Dia lindo, pássaros cantam, o mar da minha janela nunca esteve tão azul. Daqui, ouço a sereia cantar. Não adianta acreditar na natureza agora, ela não está nos convidando ao mundo, pelo contrário, ela está reinando e neste reinado a gente não cabe e não se sabe quando caberemos.

Sensação de ruas doentes, sensação estar vivendo em Chernobyl, sensação de pavor de gente na rua. Medo de gente. Eu tô com a sensação de que eu tô com medo de gente.  

Sensação de estarmos órfãos – apesar de eu não ter ideia do que é essa sensação e por isso posso estar cometendo um grande delito, desculpem-me. Sensação de estarmos sem pai e sem mãe, sendo cuidados por outros que, mesmo dando o seu melhor, não são pai e nem mãe. Falta um comando e falta o afeto. Falta essa sensação de pai e de mãe.

Sensação de raiva, de revolta, de ódio ao ver tanta gente aglomerada e os carros subindo as dunas da Sabiaguaba, enquanto ameaçam o líder comunitário de morte por tentar protegê-las, as tais dunas. 

Sensação de insegurança de comércio abrindo, sensação de contágio só de passar em frente ao salão e ver as pobres manicures submetidas às madames. Gente! Quem faz a unha numa época dessas? Sensação de que falhamos como sociedade, sensação de querer bater, mas bater bem muito, nos que invadiram os hospitais para filmar médicos e doentes a mando de um doente que nos desgoverna. Sensação de pena ao ver um pai ter de ver sua homenagem ao seu filho morto pela Covid ser destruída por um desses súditos que nos desgoverna. 

Sensação de falta de planos, de que os projetos são todos vãos, de que eles não nos tiram daqui. Sensação de descontinuidade, sensação de eternidade, sensação de vazio.

Sensação de desesperança, de preocupação, de falta de previsão. Sensação de estar fingindo achar sentido na vida, ao mesmo tempo em que me decepciono com as pessoas que ainda tentam acreditar que o sentindo é tentar levar uma vida normal. Elas não têm medo de matar as outras pessoas? Medo de pegar, de passar e de matar? Não há culpa? Será que um dia vão se dar conta de que, com o próprio corpo, mesmo sem saber, poderão ter sido responsáveis pela morte de várias pessoas em uma comunidade na qual morava a funcionária que contraiu a doença na casa da patroa e que levou para os pais, os amigos, os moradores dos barracos que distam menos de um metro de um pro outro?

Sensação de morte. Sensação ruim.

Sensação de aprisionamento na vida alheia. Sensação de dependência e de repulsa. Se ela não se isola, ela não me liberta. Ficar longe pra ficar com. Sensação estranha.

Sensação estranha. Mas sigo confinada. 

Em casa.

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