Então, a culpa é de quem?

voltando à vida

Você sente culpa? Porque eu morro de culpa. Eu sei que a culpa não é minha, mas não tem como eu não sentir culpa. Nem você que me lê, que, se me lê, deve ter um celular, ou um computador, logo, não deve ter se preocupado se teria almoço, ou jantar no dia de hoje, mas, sim, o que teria para o almoço e o jantar. Variedades, oportunidades, fartura.

Enquanto eu vou ao shopping pra comprar um brinco pro meu segundo furo na orelha, vejo na TV uma mulher catando comida no lixo para alimentar os cinco filhos e uma senhora cuja geladeira parece um descampado, é um desamparo.

Essas mulheres, mães de favela, umas com mais de sessenta anos, ou seja, sem chance alguma de conseguir um serviço com carteira assinada, ainda que o salário mínimo seja uma vergonha e que não dê dignidade a ninguém, ainda assim, nem isso elas têm. Me perdi, pera. Essas mulheres, meu pai, não há quem seja por elas. Olhe, você depender de esmola, o que será isso?

Na mesma tv, na matéria seguinte, o presidente e o ministro da economia falam que, se mantiverem o benefício emergencial pela pandemia, iriam “quebrar” o país.

O QUE RAIOS SIGNIFICA QUEBRAR O PAÍS enquanto essas mulheres estão catando lixo para alimentar os filhos? Quem é o país? Do que é feito o Brasil? De que cor? De qual classe social?

– Não tem dinheiro pra você, meu bem da favela, mas vamos aqui subir o salário do judiciário em efeito cascata, pois eles merecem.

E você?

– Você não merece.

– Mas por quê?

-Porque desde que o Brasil foi colonizado pelos portugueses, italianos, holandeses, etc, desde essa época, dessa época em que seus antepassados foram arrancados da África à força, deixando para trás família, crenças e a liberdade, desde essa época, foi entendido consensualmente que você não merece nada. Você não merece morar em uma casa bacana, você não merece ser gestora em empresa alguma, você não merece ser servido por ninguém, você nasceu pra servir. Seus filhos não são bem vindos em escolas particulares, muito menos nas festinhas dos colegas em condomínios fechados e armados contra sabe quem? Contra você. O sistema e a “cultura” são feitos para te exterminar, para que você seja eliminada do mapa, melhor dizendo, limpada do mapa para que tudo volte a ser clean e branco.

Eu poderia me alongar neste parágrafo, mas já me dói demais escrever isso. E é claro que você entendeu que essa fala não é minha, mas, sim, o que vemos todo santo dia a olho nu, essa desigualdade absurda sem que quem deveria se importar, se importe.

Enquanto isso, não se taxam as grandes fortunas, enquanto isso, pessoas se aglomeram em lanchas, em ilhas exclusivas e são muito gratas a Deus pelas bênçãos que elas e suas famílias recebem sabe de quem? De Deus.

Será que é o mesmo Deus, esse que dá a desgraça a uns e chuva de bênçãos a outros? Será mesmo que é ele, Deus, o responsável por um frango ter de durar um mês inteiro para alimentar uma mulher de 58 anos que mora só em uma favela em São Paulo? Será que ela fez por merecer não ter? E eu? O que eu fiz pra merecer tanto?

Eu sei, a culpa não é minha, mas alguém precisa se responsabilizar por isso e nós, como sociedade, precisamos, ao menos, nos indignar com isso.

Mas interessa a quem essa indignação? Interessa a quem se quem elegemos para nos representar só representam interesses de classes, digo, da sua própria classe? Pior, percebo uma certa conformação dessas pessoas que vivem submissas, como se fosse pra ser assim mesmo, seus gritos saem baixo frente a vozes poderosas.

Eu sei que isso está mudando. Eu sei que existem inúmeros trabalhos, como o do Preto Zezé, por exemplo, que buscam mudar essa realidade, mas ele precisa de mais, ele precisa gente, ele precisa de muito.

Como consolo dessa culpa que sinto, fiz uma doação pra CUFA. É o mínimo, mas não é nada, absolutamente nada. Institucionalmente e organizadamente eu deveria ser obrigada a fazer bem mais. Mas a quem interessa essa distribuição mais justa de renda?

Enquanto isso, aquelas mulheres que eu vi na TV estão há dois dias sem comer, pois o frango congelado que ela têm na geladeira, precisa durar um mês e, segundo ela, o mês é longo.

Bem longo!

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