Confinamento em três fases:
Escravidão, Censura e o fascismo brasileiro.
Sempre difícil abordar um tema, aliás dois, dos quais não fez parte efetivamente, onde a minha fala jamais alcançará, pois, usando o conceito tão bem explorado pela Djamila Ribeiro e já meio deturpado pelo mercado, não é meu “lugar de falar”.
É um risco que se corre. Um risco que corro em tempos tão urgentes nos quais os negros estão reivindicando não somente falar, mas viver, respirar. “I can´t breathe”, ele disse.
Contudo, também comungo da opinião de algumas autoras, como a Spivak que tem um artigo maravilhoso que aborda esse tema chamado “Pode o subalterno falar?”. Nele, Spivak defende que, impossibilitadas de falar, as classes oprimidas precisam de vozes que as ajudem a serem ouvidas. O tema é complexo, mas podemos refletir sobre ele em um outro momento.
Por hora, reconhecendo o meu lugar privilegiado, eu peço licença e de antemão, desculpas caso a minha reflexão não esteja à altura do que as questões aqui merecem.
Proponho hoje uma comparação e um entrelaçamento entre três tipos de confinamento, fora o que estamos vivendo com a Covid-19. São três períodos distintos da nossa história, com alguns atores diferentes tanto no campo dos opressores como dos oprimidos, mas certamente com semelhanças que possam nos ajudar a entender para onde estamos indo no Brasil de 2020.
Bem verdade que já faz um bom tempo que estamos indo para este Brasil que pretendo abordar aqui, mas o acirramento dessa emboscada está acontecendo agora e, pior, travestido de “democracia”.
Vamos a eles:
Não aguentamos nem os primeiros quinze dias dessa quarentena que já se estende por mais de setenta dias. Antes da primeira quinzena já se dava piti em casa, já se perdia a paciência com os parceiros de confinamento, já não se sabia o que fazer com a empresa (uma angústia legítima), não sabíamos como nos portar e suportar a nossa própria casa. Já disse, falo de um lugar onde se tem casa para se confinar.
Fiquei pensando nessa angústia eufórica e, chocada com a revolta da classe branca e rica em suas mansões e ainda meio atônita com os últimos acontecimentos, foi impossível não me lembrar de períodos nos quais pessoas foram confinadas e tiveram seus corpos usados e abusados por motivos absolutamente injustos, torpes, absurdos.
Primeira fase de confinamento – A escravidão
Domesticar um corpo pela cor que ele tem é de uma desumanidade que eu não entendo quem não se compadece até hoje do período de escravidão no Brasil. Corpos chicoteados, forçados a trabalhar sem descanso e sem salário, corpos sem direito de falar, de existir, corpos que serviram para o gozo do “sinhozinho”, corpos que foram objetificados por séculos e que, até hoje, sofrem as consequência de, pasme!, NÃO TEREM FEITO NADA, apenas por serem negros e explorados. Como pode? Pagar até hoje com a vida pelo simples fato de serem negros e terem sido explorados lá atrás? Qual é a lógica? Não deveria se o contrário?
Não falo somente pelos negros chacinados diariamente no Brasil e no mundo enquanto estão indo pro colégio, ou jogando videogame dentro casa. Falo também pelos negros que trabalham e não recebem seus salários em dia, que nem sequer têm suas carteiras de trabalho assinadas. Falo pelas eternas mucamas as quais chamamos de babás. Falo por elas também, elas que muitas vezes nem toam consciência da exploração que sofrem. A mãe do Miguel (assassinado pela Sarí Cortes Real), ela contraiu a Covid-19 e mesmo assim não foi dispensada do trabalho. Muitos oprimidos não têm nem a consciência de que o são, logo, jamais poderão se insurgir.
A psicanálise explica esse ódio pelo ódio, essa raiva que se tem dos negros que nada fizeram a não ser terem suas vidas usurpadas. Eu teria de descer muitas camadas aqui pra explicar isso, mas tem a ver com a culpa que não se quer assumir e, portanto, continua se reproduzindo um comportamento porque é bem mais fácil e confortável pensar que “eu faço assim porque sempre foi assim”.
Um período de mais de trezentos anos de confinamento que continua, assim como o dos povos indígenas.
Segunda fase de confinamento – A censura na ditadura militar
Avançando apenas uns 75 anos – é muito pouco tempo! – entramos em outro tipo de confinamento. Agora não tem mais a ver com a cor da pele – mesmo a gente sabendo que a exploração e a violência têm endereço certo no Brasil, o que a Ana Maria Gonçalves chamou de “Defeito de cor” – mas neste momento, o confinamento era para calar a liberdade de expressão, era para minguar a oposição ao governo, era para sufocar a pulsão criativa, era para domesticar com açoite toda e qualquer forma de liberdade que se pensasse contrária à qual um punhado de gente definiu como “liberdade possível”.
Esse punhado de gente fechou o congresso e por vinte anos decidiu sobre o voto e os direitos da população brasileira. Também decidia que músicas se podia ouvir e cantar, decidia sobre quais peças de teatro era permitido assistir, decidia até sobre a hora de voltar pra casa. Pior é que teve gente que gostou, se sentia “segura”. Que relação mais infantil, essa, não? Precisar de um Estado que mande em você para que você não precise decidir por si, pra que não precise pensar.
Às vezes me assusta como as pessoas amofinam suas vidas. Se apequenam diante das possibilidades de existir, ou mesmo de poderem ser apresentadas a outras formas de habitar este mundo e se compararem, tirarem proveito do que quiserem. Não, a maioria prefere se acovardar, deixar do jeito que está por MEDO de viver. Será que ela se esquece de que logo ali tem a morte e que a gente só tem essa chance mesmo pra se testar? Outro tema pra Freud que eu não vou me “adensar” aqui.
Terceira fase do confinamento – o Fascismo no Brasil
E agora é a nossa vez. Para muitos, a segunda vez, já que vários sobreviventes da ditadura ainda estão vivinhos da Silva. Estamos vendo nos últimos meses, e que se acirrou nos últimos dias, a tentativa de um novo confinamento para o povo Brasileiro. O presidente, um ferrenho simpatizante da fase dois relatada aqui, ele flerta com um golpe de Estado desde o início, louco pra fechar o congresso e brincar de Hittler.
As instituições – Congresso e STF – demoraram demais para agir, mas agora parecem acordar dessa preguiça que dá lutar pela democracia apenas trinta anos depois da sua conquista.
-Caramba, bicho, acabamos de sair das ruas pelas “Diretas Já” e já é hora de voltar (mesmo sem poder ir pra rua)?
É pessoal, é hora de novo, de a gente se unir em prol da nossa liberdade conquistada a duras penas e, mesmo assim, tão frágil. O problema é que o capeta age na covardia, age enquanto estamos confinados por este vírus. O desgraçado ameaça as nossas vidas enquanto a gente tenta a todo custo sobreviver.
Domingo passado a torcida organizada foi pras ruas, unida, e me deu um misto de preocupação com gratidão e lamento. Que tristeza essas pessoas precisarem sair de casa, arriscando seus corpos e de seus entes queridos para pedir pela democracia. Me senti representada, mas fiquei bem preocupada.
Alguns dizem que já é um caminho sem volta, teremos sim um golpe. Outros dizem que o coisa ruim não consegue angariar súditos para seu plano de aprendiz de Pinochet com Ustra. Um amador, se enganam outros.
E nós, por aqui, vamos tentando resistir virtualmente, buscando formas de respirar diante desta terceira temporada de um confinamento que causa mais barulho porque ameaça brancos também, empresários, enfim, mexe nos “bolsos” “profundos” do país. Fosse só pelo genocídio dos corpos negros, fosse só por esse confinamento, ninguém tava muito aí não, “sempre foi assim, é mais fácil deixar assim”. Só que eles resolveram falar e já faz um tempo, e basta ligar a TV e mirar no Tio Sam pra ver o que está acontecendo por lá.
Na realidade essas três fases do confinamento se retroalimentam, infelizmente. Uma precisa da outra pra existir. Há sempre que calar pessoas e domesticar pessoas para que um poder autoritário se estabeleça para que a hierarquia que nos foi imposta pela Europa há mais de quinhentos anos não esmoreça.
Mas BASTA! Já deu tempo de todo mundo ganhar consciência e saber de que lado precisa estar. Somos 70% e vamos aumentar esse número. Vai passar!
Termino com um poema do Mário Quintana que nos encoraja e nos traz esperança:
Poeminho do Contra
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!à