São duas da manhã da quarta-feira. Eu só me lembrei ontem à noite que era terça, logo, dia de eu postar minha crônica. É um compromisso que eu tenho comigo. Sim, porque eu não sei ao certo quando você está aí, ou mesmo se está aí, já que eu não te vejo e nem a gente se fala.
Já deitada, depois de um dia exaustivo tentando entender porque meu pai não é chamado pra ser vacinado se o irmão gêmeo dele já foi, essa sensação de corrida contra o tempo e contra essa doença que pode mata-lo, que pode me matar, te matar… Se foram mais de três mil mortes (3000 MORTES) em um único dia, porque não nós? Enfim, depois de um dia exaustivo emocionalmente, sendo que o único músculo que trabalha realmente é o do olho e este está exausto de tanto olhar pra telas. Depois de sete horas de aula – às terças são sete horas e eu tenho certeza de que são elas que me mantém sã neste confinamento – eu me deitei e me lembrei de que não tinha escrito a crônica e pensei que isso não mudaria a vida de ninguém.
Lembro-me demais de um professor da minha graduação dizer que a maior tristeza dele quando pegou catapora e ficar duas semanas em casa foi constatar que o mundo vive perfeitamente sem ele. Pensei nisso hoje e me perguntei: quem precisa das minhas crônicas.
Donde constatei, sem autopiedade alguma que a pessoa mais importante do meu universo – por mais que eu não a considere sempre – precisa das minhas crônicas. No caso, eu.
Eu preciso da escrita, eu preciso colocar fora de mim tudo o que me comove, me dói, me afeta, me intriga, me encanta, me apaixona, me faz querer, me dá desejo, raiva, gana… Enfim, preciso escrever o que me mantém viva.
Mas não pretendo fazer de mim um diário. A meu ver, já passei dessa fase e o meu dia-a-dia não anda lá muito excitante entre quarto, sala e cozinha, sendo ir à padaria o maior evento há meses.
Mas o que eu penso, o que eu vejo, o que eu leio, o que eu aprendo com meus professores, o que eu reflito, o que eu questiono, isso sim eu acho que vale à pena ser lido. Não que seja pra concordar, nem que seja pra você me achar gênia, mas é porque eu te cutuco enquanto eu me cutuco e somente a gente se cutucando, se incomodando, é que a gente pode ir transformando tudo isso aí que está errado.
Imagine que hoje, ops! Ontem, eu tive uma aula sobre um texto do Mbembe – dos maiores pensadores sobre África, sobre pessoas que vivem na iminência de serem apagadas, nas fronteiras, sobre mundo e como o ser humano está colapsando enquanto humanidade – pois bem, Mbembe e meu professor questionavam como teremos autonomia e soberania enquanto população, se tudo o que queremos é ser como o “Outro”, sendo que esse outro é um europeu colonizador que até hoje nos vê como sub-raça?
Sim, é bem complexo e eu prometo trazer em mais detalhes essa discussão pra lá de importante e vital – literalmente – porque essa tentativa de sermos o “Outro” que não somos nos faz querer destruir quem a gente não vê como esse “Outro”. Ok, tô enrolando ainda mais o raciocínio.
Mas estou vindo aqui brevemente nesta madrugada insone – coisa rara em mim – pra reforçar o que todo mundo percebeu nessa quarentena elevada a milésima potência: sem a arte não dá.
Mas, principalmente, não dá pra ficar sem a arte porque ela é capaz de nos tirar desse buraco não somente nos distraindo das tristezas do mundo, mas colocando o dedo na ferida, nos fazendo arregalar os olhos para as desgraças do mundo, nos mostrando em filmes, documentários, pinturas, romances, crônicas – oi! – contos, canções… Nos mostrando por via de Chico, Clarice, Machado, Graciliano, Bia Lessa, Rita Lee, Tereza Cristina, Caetano, Gil, Zuenir, Rancière, Conceição, Djamila, Carolina Maria, Aldir, João, Nara, Clara, Fausto, Belchior, Ednardo, Elis e mais uma lista infinita, essa arte que denuncia, que incomoda, que cutuca, ao mesmo tempo em que encanta e é a coisa mais linda do mundo.
Por isso deixei de lutar contra o sono e travei a batalha com a tela do computador e te chamo pra essa luta bonita que é a defesa da sensibilidade, do olhar pro “Outro”, mas não esse outro idealizado, mas o “Outro” que está aqui do lado, pedindo ajuda, tentando sobreviver, tentando respirar. Se você buscar, pode ser na arte, você vai encontrar quem estou falando.
Boa noite!
Bom dia!
Viva o SUS!
Vacina já – e, por favor, pro meu pai também.