Invisível – O colocador de pedras portuguesas
Ele era um invisível bem no meio da calçada. Não sei se se chamava Raimundo, José, Ernesto, Alberto ou Gabriel. Nem sei se tem nome composto e, muito menos, seu sobrenome. Araújo, talvez… Pereira, sei lá.
Estava ali, no meio da calçada de uma das ruas mais movimentadas no Flamengo, Rio de Janeiro, a Senador Vergueiro. Talvez seja a mais movimentada, não sei, rivalizando com a Marquês de Abrantes,a minha rua aqui…
Com um balde cheio de pedras portuguesas, ele ia colocando, uma a uma, como quem tenta, em vão, trazer de volta ao Rio o ar monárquico, imperial e capital de outrora. Nem sei se pensava nisso, mas eu pensei.
As pessoas desviavam sem vê-lo, como quem não tem empatia, como quem não dá bom dia, como quem só anda com a cabeça no futuro. O que irá acontecer é o que tem pra hoje e o de hoje já embrulhou peixe.
Recolocar pedras, uma a uma, talvez seja a menor partícula da reconstrução de uma cidade. Estamos acostumadas (os) a reclamar, com razão , da carência na saúde, na educação, falta saneamento básico, violência, mas nunca vi um protesto pela volta das pedras portuguesas. Pedimos o macro que é pra ver se pelo menos conquistamos o mínimo.
E as pedras são o mínimo. Andar pela calçada sem tropeçar é o mínimo, poder trafegar com uma cadeira de rodas também deveria ser, mas tá bem longe disso…
É a mão do invisível quem faz o macro. Quem cata o lixo, quem vende o pão, quem dá o troco no ônibus. Quem aluga barraca de praia, quem limpa o peixe que compro no supermercado, quem escreve crônicas para um blog. Este último tem menor relevância, claro.
Quem tempera a sopa, quem esteriliza os talheres do restaurante com álcool 70, quem produz o pano de chão, quem vende o pano na rua e passa o pano no chão do clube que você frequenta… Um monte de invisíveis feito o seu Fulano colocador de pedras portuguesas.
Ele trabalhava ali – não sei se acabou o serviço – com semblante feliz, à luz de um dia ensolarado e fresco, com ar de quem passou uma noite ótima e que deve repeti-la mais tarde. Ar de quem não espera tanto, mas não se contenta com menos. Ar de quem não espere, talvez. Como essas pessoas que desconhecem a ansiedade e que o desejo imediato é o do prato do almoço pra matar a fome.
Quem me dera! Vivo, quando pouco, cinco dias adiante, no mínimo.
Mas tenho os meus momentos de pedras portuguesas. Tento encaixá-las, uma a uma, pra que se montem em um quebra-cabeça absolutamente desordenado. Olho pra cima, com cuidado pra não tropeçar, e admiro a cor desse azul de inverno. Observo as pessoas, seus semblantes e nuances. Algumas correm preocupadas, outras vagam meio perdidas, outras vivem…
Observo o seu Fulano e dou “bom dia”. Cumprimento as pessoas que me servem, seja direta ou indiretamente. Seu fulano nem sabe, pois pra ele, sou invisível também. Faço parte das centenas de pares de pernas que passaram pelos seus olhos a um metro do chão, acocorados colocando pedras portuguesas.
Ele não responde, nem me vê.
Mas eu te vi, seu fulano invisível colocador de pedras portuguesas.
Eu te vi.
Uau! Consegui! Não falei de política, como nas três últimas crônicas. Viva!!! Apesar de que falar dos invisíveis é falar de política, né? E se você quiser ler as crônicas que falaram de política, é só clicar aqui, aqui e aqui.