Começo com uma confissão: já achei a arte um banalidade.
Lembro-me de que, mais nova, preocupada com os moradores de rua, com a miséria na África, com a conta bancária quando eu ainda nem tinha, eu ficava me perguntando o que diabos as pessoas achavam importante em arte.
Não. Não era bem assim o pensamento. É que a memória é uma ilha de edição à nossa revelia, vai editando os fatos e versões ao seu “bel esquecer”. Mas eu me lembro que era mais ou menos isso. Achava que o dinheiro tinha de ter destino para as coisas concretas. Alô presidente! Eu achava isso com uns dez anos de idade, ok? Acredite, eu segui a carreira de Humanas.
Cresci assim. O meio no qual eu cresci era assim. Mesmo sendo regado à música, fomos todas “treinadas” para sermos bem sucedidas em carreiras de terninhos e salto alto, como qualquer profissional “deveria ser”. Não que nossos pais dissessem isso claramente, mas era assim que a gente entedia. Pelo menos eu achava que sucesso tinha a ver com horas e horas de trabalho e planilhas e escritórios… Essa coisa de artista era só pra gente admirar, e era uma profissão menor.
Não era muito assunto essa coisa de falar dos afetos. A gente até falava, claro, de paixões, de amores, mas sempre ligado ao outro, ao paquerinha e tals… Não entrava nas rodas esse papo de “O que de fato eu sou? O que de fato eu quero ser?”. Essa coisa de estudar as camadas de cada um, de se aprofundar naquele universo que somos individualmente, isso era crise. “Fulana tem um emprego tão bom e fica com essas ideias de querer fazer outra coisa – outra coisa, no caso, era ela querendo se encontrar, era ela querendo escrever, dar cara nova pra uma vida que ela nem sabia se tinha escolhido ou não”. Ficou no mesmo lugar, ela, até hoje. Mas acho que passa bem.
Arte era hobby.
Na verdade, eu acho que eu era assim. Eu era mais assim do que as outras pessoas. Eu me cobrava resultado, números, dinheiro e me afundava em mim pra não pensar no que de fato queria fazer. Eu não me ouvia e me julgava e julgava as pessoas também.
Corta a cena, a gente já tá em 2017. Fui estudar Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo na Puc-Rio.
Eu podia encerrar aqui esse confissão, acho que você já entendeu, mas vou mais adiante, espero que você tenha paciência de ler.
Passei um ano desse curso de dezoito meses meio que flutuando. Como se eu tivesse sido abduzida para um plano de céu azul, flores amarelas pequeninhas a perder de vista (toda vez que penso em alguma espécie de céu católico, me vem essa imagem), onde as pessoas me pegavam pela mão e diziam: “se lembra daquilo tudo que você achava, pensava, se angustiava e não sabia dar nome direito? Pois olha, aqui a gente também pensa, acha, se angustia e, principalmente, a gente estuda isso pela literatura, acredita?” “A gente estuda os afetos pela literatura e pela arte pensando o nosso contemporâneo.”
-Mentira! Pensava eu num tom incrédulo e cheio de esperança. Mentira que você reflete sobre a pobreza e quem é “bandido” nesse mundo pela leitura! Mentira que existe essa Mulher, a Carolina Maria de Jesus, mentira que existe a Conceição Evaristo. Mentira que o Freud é lido aqui pra gente entender que aquilo que a gente rejeita tanto, na verdade, tá bem dentro da gente em forma de medo e recalque*! Mentira que vou ter uma aula pra falar de Chico Buarque e da música como manifesto igual eu fiquei seis meses fazendo na minha graduação, num trabalho solitário entre mim e meu orientador. Mentira que vocês se interessam por isso? Mentira que vocês acham que, pela literatura, a gente pode entender como viemos parar aqui e porque esse capitalismo é tão injusto? Marx, Didi Huberman, eles que disseram? Mentira que vocês vão me explicar sobre preconceito racial e misoginia pelos contos de fadas e por Monteiro Lobato? Ah! Para vai! Isso só pode ser mentira.
Não, não era. E é claro que depois desses dezoito meses eu virei outra pessoa. Pessoa de quem me orgulho muito mais.
Como bem disse Belchior certa vez: -O projeto de um artista não pode mudar a situação. Pode oferecer condições para que ela mude.
É que a arte nos faz refletir a partir da gente mesma. A partir do que a gente já tem de recursos afetivos aqui, ou aí, dentro e, sem que ela seja imposta, sem que seja um conselho, ou uma sentença, a arte meio que te convida a enxergar por outra esfera, outro ponto de vista que também é seu, mas tava ali empoeirado em meio à tantas convicções às quais você foi assimilando ao longo da jornada.
Você não é obrigada (o) a ler Vidas Secas do Gracliano, mas, se um dia se dispuser a ler, vai ver tanto de si ali que pode ser que alguma coisa mude em ti quando olhar para uma família de miseráveis com o rosto todo vincado de sol e aridez no Nordeste. Você não é obrigada (o) a ir num museu ver uma exposição do Cubismo no mundo. Mas, se um dia quiser ir lá ver algum Picasso, vai poder entender que ele estava rompendo com um padrão estético todo carregado de significados, como a opressão, por exemplo, que era o Renascimento. Você nem é obrigada (o) a ler Monteiro Lobato e as Reinações de Narizinho, que é lindo demais. Mas, se resolver ler pro seu filho, pode contextualizar a questão da empregada doméstica negra e todos os outros personagens brancos, inclusive a boneca falante (adoooro a Emília). Essa problematização você pode levar pro cinema, pra música, pra leitura da Turma da Mônica, pro teatro, inclusive para àquela obra de arte que tanta gente censurou em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Dá um Google, pesquise quem é Adriana Varejão antes de achar que ela apenas pintou um quadro com um “homem transando com um animal”.
A arte pode ser banal aos olhos de quem vê a camada mais superficial de uma sociedade. A priori, ela pode parecer supérflua, até porque, ler um livro não enche barriga e nem paga as contas.
Mas se você se detiver um pouquinho, vai perceber que é através dela que as revoluções são feitas. As piores e as melhores. São os artistas que dão cara, voz, texto, corpo e cor às situações críticas que nos acometem. Tanto é verdade que, a primeira coisa que governos totalitários buscam difamar é a arte, ela é uma forma muito potente e encantadora de protesto.
A arte é àquela tia querida que não vai brigar com você feito pai e mãe, mas vai estar sempre ali pra te dar apoio, pra te pegar pela mão, para te conduzir por vias que te assustam, mas que podem ser muito legais, pra te dar segurança e carinho, colo, que também é casa, pois você sabe que sempre vai poder contar com ela. A arte encanta, persuade e o ser humano jamais conseguiria viver sem se abstrair, sem se distrair, sem “escapar” dessa realidade externa e interna tão conflituosa em que vivemos e que somos.
E, por fim, se você se deixar levar, vai ver que a arte é fundamental para nossa sanidade. E a nossa sanidade é fundamental pra gente fazer girar todas as rodas fundamentais do mundo.
Renda-se à ela.
*Aqui falo do artigo “O estranho”, do Freud (1919). Uma leitura imperdível pra você seguir vivendo.